quinta-feira, 29 de julho de 2010

Paquera

À entrada do consultório notei o rapaz, alto, cabelos calculadamente desarrumados, apertando freneticamente seu mp3 player, impaciente com a espera.
Entrei e falei com a atendente.
Procurei um lugar protegido do ar-condicionado, sentei, peguei uma revista e começei a folheá-la.
O rapaz entra em seguida, para uns instantes na recepção, e na sala de espera escolhe uma cadeira próxima a minha.
Senta, pigarreia, tosse e olha para mim.
Finjo não perceber, achando graça. Nessa idade o que querem é chamar atenção, treinar o jogo da sedução.
Na falta de uma garota da sua idade, ele escolhe a mim.
Olhando ao redor eu vejo que não há concorrência alguma.
Senhores e senhoras uns 20 anos acima e crianças uns 30 anos abaixo.
Finalmente deixa o aparelhinho cair no chão, perto dos meus pés.
Quando olho, ele desvia o olhar.
Continuo folheando a revista.
A atendente me chama:
- Neusa. Pode entrar.
- Obrigada.
Saio pensando no cômico da situação.
Ainda que não houvesse opção melhor, senti-me lisonjeada com a escolha.
Esses garotos!

quarta-feira, 28 de julho de 2010

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Fração

Numa fração de segundos
num cruzamento
área nobre da cidade
fim de tarde de domingo
mãe no volante
menino distraído
avó atenta
parados no sinal

numa fração de segundos
assistimos a tudo
atônitos:
na via contrária             
  em alta velocidade         
    avança o sinal vermelho
   
na perpendicular
  freia
    capota três vezes
      choca-se contra o poste
        ali fica, teto na pista

perdemos o contraventor de vista
ouvimos as buzinas dos carros em volta

uma fração de segundos
o sinal abre
seguimos em frente
assustados
vivos

a sorte quis
que os envolvidos sobrevivessem
que nenhum outro carro fosse atingido
que saíssemos ilesos
fisicamente ilesos

sexta-feira, 23 de julho de 2010

De minha parte

Lembro de ter lido numa entrevista, uma socióloga falando de sua obra, não lembro quem era, nem em qual revista li, mas não vem ao caso agora.

- Como é ser casada durante quarenta anos com a mesma pessoa?
- Quem disse que sou casada com a mesma pessoa? Nesses 40 anos, ele mudou, eu mudei. Nem ele é a mesma pessoa que conheci a 40 anos, nem é a mesma pessoa de ontem, e nem mesmo eu sou a mesma pessoa.

Adorei.

Iluminou.

Eu, de minha parte, sou casada a 15 anos com esse pessoa mutante chamada Eduardo.

E me esqueci de elogiar o macarrão que ele fez ontem no almoço.
Estava mesmo delicioso, como tudo mais.

terça-feira, 20 de julho de 2010

Sentir

O texto de Martha Medeiros publicado em Palavra Aguda me fez lembrar de um questionamento recente sobre a obrigação de ser ou pelo menos parecer alegre.

Se você tem comida na mesa todo dia, tem trabalho, família, fé, saúde ou doenças sob controle e bem assistidas, não há motivo para tristeza.
Sentir tristeza pelo sofrimento alheio é hipocrisia, faça alguma coisa e coloque um sorriso nesse rosto, faça o favor.

Essa convicção veio como reviravolta do pensamento completamente inverso, o de que, por ter perdido o pai de forma trágica e inesperada, seria sempre uma pessoa triste e sizuda, como se fosse preciso demonstrar a todo momento e para todos a dor que carregava no peito, o estigma da orfã, vítima da maldade e injustiça humanas.

O equilíbrio ainda busco. Minha natureza é de alegria, que não é sinônimo de leveza, já que o tem que ser, o é correto, o é de minha responsabilidade, estão sempre pesadamente assentados sobre minha forma de agir, pensar e sentir.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Pergunta da semana ... nº 6

Do que você tem medo?

Senilidade

Se for uma brincadeira é de muito mau gosto.
Estou aqui tranquila, lendo meu livro e passa esse homem, quase da minha idade, me chamando de mãe.
Minha vontade é mandar ele pastar, dizer um palavrão. Acho que já fiz isso, não adiantou.
- Não tenho idade para ser sua mãe, meu filho tem 3 anos.
Sinto falta do meu menino. Agora com essa doença, acho que ele tem passado mais tempo na casa da minha irmã, mas não tenho certeza disso também. Sinto muita falta do meu bêbe.
Dia desses eu cheguei em casa na hora do almoço e ele pulou no meu colo, bagunçou meu cabelo, disse que estava me arrumando. Depois eu desfilei para ele pela sala e ele adorou e pediu "de novo mamãe". Mas com essa doença, quase não o vejo mais.

Outra que não engulo é essa moça me seguindo, pajeando. Xingo mesmo. Às vezes não dá tempo de chegar ao banheiro e eu sujo a casa. Doença horrível! Mas pelo menos essa moça faz alguma coisa além de ficar me olhando com cara de boba.

E agora esse homem. Lembro de tê-lo visto num casamento, acho que é alguém da família, mas não consigo lembrar quem é. Queria perguntar para o Eduardo, mas ele está no hospital. Não sei porque não me levam mais para visitá-lo.
Outro dia veio uma velha senhora me buscar, disse que ia me levar para ver o Eduardo. Mas não fomos ao hospital, fomos a um cemitério. Acho que onde papai está enterrado. Nunca gostei de enterros e cemitérios. Sempre achei que não valia a pena, não era lá que estava meu pai e aquele lugar lembrava um dia triste, o da sua morte. Prefiro lembrar de outros momentos com ele, vivo. Mas não fomos ao hospital e não pude conversar com o Eduardo.

O tal homem sempre aparece à noite, diz que veio me ver, saber como estou.
Ora, estou muito bem, só preciso ficar boa logo para voltar ao trabalho e cuidar do meu filho.
Pergunto por Davi, mas ele não responde nada, abaixa a vista. Será que está doente e não querem me contar?

Peço para falar com a Inez, mas vem aquela velha senhora conversar abobrinhas, a gente reza juntas, mas não me dá notícias nem do Davi nem do Eduardo. Sinto tanta falta deles.

De tudo isso o que me incomoda mais são essas fotos de uma velha senhora, de cabelos muito brancos, de uns 80 anos, magra e encurvada. Essas fotos pregadas nos espelhos da casa. Isso já é demais! 
Será algum ensaio artístico? Mas não lembro de ter fotografado essa velha senhora. Quando for visitar Eduardo vou perguntar a ele.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Excepcional

Mãe e filha entram no consultório onde eu, já sentada, aguardo a minha vez.
As duas de cabelos presos - os da filha numa trança caprichada, os da mãe amarrados em desalinho -, saias jeans longas e rodadas, camisas de manga curta - a da filha mais justinha e colorida -, bolsas a tiracolo.
O pai entra em seguida, de calças compridas, camisa de manga longa por fora da calça, óculos.
Pai e mãe beiram os cinquenta, talvez. A idade da filha eu não sei precisar, expressão infantil num corpo adulto de baixa estatura.
A primeira voz que ouço é a da mãe:
- Vamos começar de novo, filhinha. Esqueça o que aconteceu. Uma nova batalha e nós vamos vencê-la.
Um beijo, a filha olha e esboça um sorriso tímido.
- Mamãe e papai estão namorando - diz o pai, com carinho e atenção, para a filha criança-mulher.
- Vamos pedir ajuda a Deus e ao médico.
- Pela misericórdia de Deus vamos vencer mais essa. - diz ele, olhando ora para a filha ora para a esposa.
A filha balança a cabeça afirmativamente ou diz um sim baixinho, quase inaudível.
Calejados e resignados.
Ansiosos por conversar com o médico, buscar uma solução, uma estratégia para uma nova batalha dessa guerra permanente.
Estranhei aspecto e semblante daquela moça, e de seus pais. Aquele ir e vir dela em passos rápidos.
Estranhei o que diziam e a forma como diziam, ternos e até meio bobos.
Depois de alguns minutos ouvindo-os conversar e trocar olhares e palavras de carinho e esperança:  uma família, como tantas outras. Unidos, pegados, ajuntados, aliados nessa luta.
Vencer já venceram.
Todo dia e por muito tempo.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Preguiça

Hoje acordei com sono e preguiça.
Preguiça de falar, de pensar.
Preguiça de me preocupar.
Preguiça de reclamar, de pedir, de explicar, de entender, de analisar.
Preguiça até de ouvir.
Meio que uma impaciência e cansaço.
O dia de hoje poderia ser todo no automático.
Dirigir, chegar, sair.
Só o computador e a lógica de um programa ou de uma consulta qualquer.
Sem falar com colega algum.
Terminar o dia e ver e ouvir meu filho. Falar só pelo olhar.
Beijar e abraçar meu marido. Falar só pelo olhar.
E dormir.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Pergunta da semana ... nº 5

Já se desfez de algo de que sentiu falta depois?

Azul

O céu lavado de branco amanheceu azul, de um azul alegria sem igual.
Hoje crianças riem e brincam, pessoas conversam, nas ruas que estavam cheias de fantasmas sem rosto e sem voz.
A casa é refúgio, não mais asilo de medo e solidão.
A noite é doce, serena, suave.
Todo mal converteu-se em amor.
Todas as cores voltaram.

Inspirada na música Black - Pearl Jam, só que do avesso.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Fotos não tiradas

Um senhor,
cabelos e barba brancos,
bermuda e camisa,
cachimbo na boca,
em pé na esquina,
lendo o jornal.

Dois homens,
andando na calçada da via movimentada,
revesando o carregamento
de um aparelho sanitário.

Bandeira com emblema da seleção brasileira
presa no alto de uma mangueira.

Três quarteirões de uma rua na sombra
desenhada pelas bandeirinhas verde-amarelas.

Mas e seu eu estivesse com a câmera será que pararia para fotografar?