terça-feira, 30 de novembro de 2010

Onde a cólera?

Interessante como Raduan Nassar escreve em Um copo de cólera, seus parágrafos longos, os diálogos entre aspas no meio dos períodos repletos de pensamentos do protagonista, com seus c'oas, c'um, incomuns.
Não terminei a leitura, mas até aqui, parece-me inverosímel que numa discussão se usem os termos do livro.
Trata-se de uma jornalista e de um canalha letrado, sei, mas tais personalidades não brigariam em bom e baixo nível e alto e bom som como os demais mortais?
Ando me perdendo no raciocínio e linguagem intrincados desse homem que tenta controlar, sem muito sucesso, o fio da sua cólera.
Resta pedir ajuda a literata da família: Lucinha, socorro!

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Sem pressa

O sol de meio dia a pino, a cabeça latejando. Não devia estar com uma cara muito boa.
Ainda assim a senhora me parou quando eu andava em direção ao carro estacionado na rua próxima à empresa.
- Minha filha, porque quando a gente fica velha anda tão devagar?  Se eu estiver segurando o braço de alguém, como dessa menina que anda comigo, consigo acompanhar, mas sozinha...
- É mesmo? - ela está bem, porque minha mãe, muito mais nova, nem arrastada anda mais rápido.
- É, porque será?
E para que falar em velhice, doença?
- Mas também, pra que essa pressa toda não é mesmo? Vamos devagar, apreciando o dia. Gente nova é que só anda correndo, aperreada.
- É mesmo, e eu moro aqui pertinho. Bom dia, minha filha, Deus te acompanhe. Até mais.
- Amém. Até logo.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Férias da meninice

Coisa mais divertida era tirar todos os calçados da antiga sapateira da vovó.
Calça-los, desfilar pela casa.
Nessas horas vovó contava os dias para o fim das férias e o retorno da sua paz, rotineira, inflexível.
Inez já mostrava seu interesse pelos bichos e espalhava açúcar pelo chão, num caminho até a porta, para assim poder observar as formigas com calma e conduzí-las à liberdade.
Vovó chamando tudo aquilo de arrumação.
- Que é mais que essas meninas vão inventar Maninha?
Subir no sapotizeiro e comer muitos frutos maduros e quentes.
Fazer a barba do vôvo com talco, cuspe e pente.
Passar o dia no sítio de Cascavel, assando castanha de caju, descascando e comendo mal esfriavam.
Tomando banho de poço, aos baldes.
Dias de praia, banhos de mar até não mais poder, com os primos que víamos uma vez por ano.
Aprendendo brincadeiras e toda sorte de danações.
Assim era, na meninice.

Férias em Fortaleza, 1977-1979

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Casinha Maldita

Um portãozinho simpático, pintado de branco, um corredor ocupado por um banco de madeira, debaixo da janela do quarto. No fim do corredor, a porta.
Casinha de vila.
Os móveis não condizem com o tamanho e a simplicidade do lugar.
O gesso do forro quebrado em vários pontos, alguns pedaços dependurados parecem prestes a cair, os fios de arame à mostra.
Na cozinha, improvisada num dos quartos, a mesa é demasiado grande, assim como os armários. O fogão enferrujado destoa.
Ali quase não há mais forro, as vigas e telhas aparecem.
Em dia de chuva, a casa é uma peneira.
Outro corredor leva ao que deveria ser cozinha, mas foi transformado em área de serviço.
Um varal toma conta deste corredor e do último compartimento.
No chão um motor barulhento puxa água do poço. Quando o motor quebra, a única forma de ter água é pegar com baldes direto do poço.
O único banheiro fica no fim da casa, com uma pequena janela, com astes de ferro como de prisão, aberta para o exterior, mal coberta por uma toalha.
Nenhuma privacidade. Pelos telhados das casas, andam homens, meninos.
Nos cantos desse último compartimento, buracos, pequenos buracos de ratos. Não havia veneno, nem cimento, nada impedia que eles proliferassem.
O quintal da casa que fazia limite com a casinha de vila era um criadouro desses bichos.
E eles tomavam conta de tudo. Durante à noite, passeavam pela casa, subiam no armário da cozinha, derrubavam latas de mantimentos, assustando mãe e filha que dormiam na sala.
Donos e habituados, passaram à sala, passeando por debaixo do sofá-cama e da rede.
Insone, a menina passava longas horas tentando espantar os bichos.
Foram muitos anos nesta casinha que habita os pesadelos das três meninas, que hoje moram em apartamentos, e não são mais meninas.

Casinha da Vila São Francisco, 1987-1996

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Frágil

Ontem mesmo, quatro desmaios, pressão muito baixa, ânsias.
O motivo? Não sabemos ainda.
Glicemia? Dentro dos limites da senoide administrável.
Comida estragada? Nenhum outro sintoma indica, exame de sangue normal, nem virose, nem infecção.
Gravidez? Duvido. Método noventa e nove vírgula noventa e nove por cento seguro, e meu menino, quando na barriga, só me fez sentir muita fome e muito sono.
E então? Agora começa a investigação para encontrar um culpado: se neurológico, se cardíaco, se estresse, ou outro motivo, ou nenhum.
Quando souber, digo aos que tiverem interesse e aos que não tiverem também. Vá lá lhes seja útil.
Lição? Hoje pessoas que cuidar, coisas que resolver, depois, bem, depois a vida segue sem mim.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Lembranças

Tinha um sonho recorrente quando era menina.
Sonhava que morávamos numa casa de fazenda, antiga, com um grande alpendre.
Nesse alpendre, numa cadeira de balanço, meu pai embalava um menino.
Esse menino era meu filho.
A mamãe e as meninas, eu não as via, mas estavam lá.
E eu olhava para meu pai e meu filho com um amor e um orgulho imensos.
Conversávamos e ele falava de planos para aquela terra que era dele e nossa.
Falava de detalhes, tais árvores frutíferas, tais leguminosas.
Não lembro bem, mas eu discutia com ele o que era melhor plantar.
E acordava com uma sensação boa e ruim aos mesmo tempo.

Mas deixemos nossos mortos em paz que os vivos requerem cuidados.