segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Amizade

"... não entendo amizade como uma soma de gestos recíprocos, não compreendo amizade que contabiliza, que anota visitas e cartas, que alega, que exige exclusividade, que tem como preocupação constante o receio de desagradar, amizade que cansa, fazendo recriminações constantes, amizade que absorve e que escraviza.
Amigos se dizem mutuamente as coisas de forma clara e direta, ..., não ficam a fechar a cara, a torcer caminho, cultivando lundu, explorando mágoa, ocultando sentimento.
Amigos se dizem o que sentem, simplesmente, ...
Seria medonho entender amizade apenas como a visita diária, o ver-se frequentemente, o cartear-se amiúde, regularmente, esse jogo de ping-pong afetivo, a repetição de compromissos de fidelidade, o presentinho, os clássicos protestos de estima e consideração das cartas oficiais.
...
Seria horrível imaginar como amizade a convivência dos que se insinuam na estima alheia e vão trabalhando aos poucos no sentido de impor-se como modelo, dos que pretendem projetar nos outros a sua personalidade, dos que exigem dos amigos reações iguais às suas, dos que querem os amigos à sua imagem e semelhança, dos que pretendem determinar aos amigos as atitudes que normalmente, e em princípio, devem ser tomadas de modo espontâneo, esquecidos de que cada um tem sua forma particular de agir e de reagir, que cada um, como diz o outro, "é um sopro de Deus que não se repete".
Seria insuportável ter como amigos os egoístas, os avarentos que, no fundo, só são amigos de si mesmos - os que não sabem compreender e perdoar, os que exigem posição de primeiro plano no nosso afeto, os que esmagam mesmo protestando afeição) e acabam configurando um tipo de relação humana que , escondida sob o nome de amizade, não passa de conta-corrente afetiva, talvez jogo de interesse, troca de pequenos ou grandes favores, hipocrisia.
Amizade é outra coisa, não se impõe, não se força, não se compra, não se transfere, não se delibera, tem a sua linguagem própria, até nos silêncios, nos gestos mais simples...
Amizade é um sentimento muito nobre, muito alto, muito puro, muito profundo, muito sério, muito verdadeiro, muito poderoso, muito belo, muito especial...
É um sentimento tão fabuloso que a palavra amigo não admite adjetivo ao seu lado, tem que vir sozinha, porque é impossível falar em "amigo bom", sem tombar num pleonasmo grosseiro, não se pode falar em "amigo ruim" sem cair em contradição: neste ponto a amizade é tão exigente como a honestidade, não permite superlativo, nem aceita meio termo.
Amizade é confiança mútua, é ajuda, é lealdade, é uma forma de identificação, é a solidariedade nos momentos difíceis, mais do que nas horas festivas; é respeito recíproco, sem quebra de naturalidade, da liberdade de agir e de falar, é aceitação da outra personalidade sem prejuízo da sua própria, é aceitação do amigo, incondicionalmente, no conjunto, com toda sua bagagem de virtudes, defeitos, pecados e graças.
Os que saem desta concepção (bastante ampla, é certo, mas inegavelmente veradeira), os que exigem festejo constante, reverência permanente, os que se habituam a interpretar a seu modo as atitudes dos amigos, mesmo as mais bem intencionadas, com relação a eles e se precipitam em conclusões fáceis e falsas, estes ficam repetindo aborrecimentos recíprocos que terminam gastando tudo...
E que eu, particularmente, me rejubile ... pelos amigos que tenho e que não mereço, assim como são - e que me aceitam, assim como eu sou."

José Milton de Vasconcelos Dias - Cartas sem Resposta - Da Amizade (1974)
Fonte: Antologia Terra da Luz - Prosadores (1998)

2 comentários:

Juan Moravagine Carneiro disse...

Interessante começar o ano lendo este escrito...me fez repensar algumas coisas

abraço

O Neto do Herculano disse...

Amizade, de verdade, é algo raro.